SOBRE SIMULACROS E CARICATURAS – OU A NATUREZA CLASSISTA DO DIREITO

 

 

Sob uma ótica idealista, o Direito é, segundo Celso, “A Arte do Bom e do Justo”, ou seja, equidade. Já na concepção de Baruch Spinoza ou Benedito Espinosa, o Direito é uma luta de forças e potência; onde o poder de cada pessoa corresponde ao seu poder e direito dentro da sociedade.

 

Por outro lado, o processo jurisdicional ou judicial é uma trama dialética, onde se dá a confrontação das teses da acusação e da defesa, mediadas pelas provas obtidas ou produzidas na trama e, ao seu término, toda a urdidura é submetida ao crivo da Lei ou dos Costumes, se for o caso. Ao menos sob o aspecto ideal, é assim que deve se desenvolver o processo judicial. Do contrário trata-se farsa ou simulacro.

 

Como de fato, e a luz da razão, o Direito não “A Arte do Bom e do Justo”, mas uma luta de forças, como bem percebeu o grande filósofo de Amsterdã, Baruch Spinoza.  Sem sombras de dúvidas, todo processo judicial se desenvolve dialeticamente, contudo, nem sempre a prestação jurisdicional efetivamente distribui Justiça, eis que o direito de cada pessoa corresponde ao seu poder dentro da sociedade e nem todos os homens são aquinhoados com a mesma porção de poder, ou seja, se o poder é distribuído desigualmente a Justiça também o é.

 

São muitos os exemplos de processos judiciais cujas sentenças são verdadeiros simulacros ou caricaturas do fazer ou do distribuir Justiça, muitas vezes se tratam de crassas injustiças, senão justiçamento.

 

Um dos exemplos mais famosos foi a trama que resultou na dissolução da Ordem dos Templários, a apropriação dos bens da Ordem pelo Estado Francês e a condenação dos seus membros à fogueira, sob as ordens do Rei Felipe, o Belo, de França. Toda a cabala que resultou na perdição da maior e mais rica Ordem Religiosa Católica da Idade Média é descrita no romance histórico “O Rei de Ferro” de Maurice Druon.

 

A Ordem teria se tornado a maior adversária das pretensões de fortalecimento do Estado Nacional Francês. Por outro lado, o Rei Felipe, o Belo, detinha uma enorme dívida financeira com a Ordem Religiosa, que era espécie de Banco Central da Europa à época medieval. Para se desvencilhar daqueles adversários indesejáveis, Felipe, o Belo, capturou o Papa, Clemente V, disseminou calúnias e invencionices horrendas acerca de supostas práticas nefandas dos membros da Ordem, desde a sodomia às práticas das religiões judaicas ou islâmicas. Através da mistificação, da transmutação de mentiras e invencionices em verdades, o Rei Felipe, o Belo obteve dos reinóis a convicção no sentido de serem os Templários perigosíssimos hereges e monstros, os responsáveis por todas as desgraças da França de então.

 

Por fim, com o consentimento papal,a Ordem foi dissolvida e num julgamento que foi um verdadeiro simulacro, eis que baseado em delações, provas falsas ou inexistentes, os membros da Ordem dos Templários foram condenados à fogueira, o cumprimento da sentença daquele que foi o maior dos julgamentos da Idade Média se deu no 13 de outubro de 1307, uma Sexta-Feira.

 

Um outro exemplo de julgamento caricatural foi o engendrado pelo Tribunal de Nuremberg, eis que toda ordem jurídica, todo o legalismo foi posto de lado para que se obtivesse a condenação dos ex-militantes Nazistas.

 

De fato, os julgamentos de Nuremberg foram conduzidos por um Tribunal de Exceção. No famoso julgamento os nomes dos réus foram escolhidos antes mesmo que se preparasse um indiciamento, e antes que se houvesse negociado a Carta ou que estabelecia a lei ou código mediante ao qual cada um ou alguns dos réus seriam julgados. O que orientou a seleção dos nomes nos Julgamentos de Nuremberg não foi a ação pessoal, a crueldade ou a notoriedade dos réus, mas a consideração de que se encaixavam no plano norte americano e dos demais vencedores da guerra para julgar organizações.

 

A frase do militante Nazista, Hermann Goering, que fora condenado a morte pelo Tribunal, traduz de forma lapidar o pensamento de Baruch Spinoza ou Benedito Espinosa, acerca de ser o Direito uma luta de forças e potência; onde o poder de cada pessoa corresponde ao seu poder e direito dentro da sociedade:O vencedor será sempre o juiz e o derrotado o acusado.

 

A se trazer à baila os julgamentos conduzidos pelo Tribunal de Nuremberg não se está a dizer ou defender que os criminosos nazistas devessem sair ilesos e se safarem dos seus crimes hediondos contra a humanidade, a grande questão e outra. O que se quer demonstrar que sempre e sempre, mesmo sob o ordem democrática é possível ocorrer a “desconstitucionalização e a derrogação da legalidade estrita, quando as sociedades e todo julgador, sobretudo em determinadas conjunturas,embora desencadeie a urdidura do processo jurisdicional ou judicial, obedecendo a trama da dialética, quando, porém, da prolação das sentenças nem sempre essas respeitam a existência ou inexistência de provas e nem sem sempre são submetidas ao crivo da Lei ou dos Costumes, se for o caso. Muitas e na maioria das vezes, as sentenças são proferidas segundo as conveniências, sob a ótica de terminadas ideologias e perseguindo determinados interesses, até inconfessáveis, buscando um fim a que sempre se pretendeu alcançar.

 

Sem embargo, quando se trata de se desvencilhar de inimigos verdadeiros ou presumidos, nos julgamentos há sempre uma perversa articulação entre os acusadores e o julgador, inexiste imparcialidade e não se obedece aos limites da Constituição ou do ordenamento jurídico infraconstitucional, tudo não passa de terrível encenação. Ou como diria Fernando Pessoa, no famoso poema, de 1923, Lisboa Revisitada, “Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. ” Nesses julgamentos não se persegue a verdade e a técnica pela técnica é apenas para dar parecença de legalidade ao que de fato é ilegalidade.

 

Inequivocamente,o processo e a condenação do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, obedece a essa mesma trama, trata-se de uma caricatura e de um simulacro, sem que, todavia, se tenha a ousadia e audácia de dizer “Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. ”

 

 No caso  do  o Juiz, por  ser egresso e membro ativo do establishment, por ser um crente e fanático na excelência das desigualdades entre os homens, na excelência do neoliberalismo enquanto modelo sistema econômico e organização social,  por pertencer aos mesmos agrupamentos e classe social daqueles que efetivamente detém o Poder, eis que detentores do Capital, quando da prolação da sentença não o fez distribuindo Justiça, mas atendendo aos reclamos daqueles que comungam da sua mesma ideologia e que são da sua classe.

 

 A sentença proferida, aparentemente obedecendo toda ritualística da dialética, um elaborado técnico dentro da técnica, trata-se na verdade de um verdadeiro opúsculo de Tribunal de Exceção, demonstração da seletividade que se opera em quase todo e qualquer julgamento e da justiça de classe que se pratica, onde o que se persegue efetivamente é sem e sempre a salvação de uns, daqueles que efetivamente e verdadeiramente detém o poder e o direito dentro da sociedade e, por outro lado, a perdição de outros, aqueles que, ingenuamente, acreditam que todos são iguais perante a Lei é que a Lei é para todos.

 

AUTOR: MIGUEL DOS SANTOS CERQUEIRA, Defensor Público, estudioso de filosofia, história e política.  Militante de Direitos Humanos e titular da Primeira Defensoria Pública Especial Cível do Estado de Sergipe. E-MAIL: migueladvocate@folha.com.br

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